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CABO VERDE: DO SEU ACHAMENTO À INDEPENDÊNCIA NACIONAL
O arquipélago de Cabo Verde é formado por dez ilhas e cinco ilhéus que perfazem uma superfície de apenas 4 033 km2. Em contrapartida, dispõe de um espaço marítimo exclusivo que ultrapassa os 600 000 km2. Situa-se ao largo do Oceano Atlântico, a cerca de 455 km do promontório que lhe deu o nome: Cabo Verde (Senegal). As ilhas e ilhéus formam dois agrupamentos segundo a sua posição em relação aos ventos dominantes do nordeste:
As ilhas de Barlavento: Santo Antão (779 km), São Vicente (227 km), Santa Luzia (35 km) , São Nicolau (343 km), Sal (216 km) e Boavista (620 km), e os ilhéus Branco (3 km) e Raso (7 km).
As ilhas de Sotavento: Maio (269 km), Santiago (991 km), Fogo (476 km) e Brava (64 km), e os ilhéus Grande (2 km), Luís Carneiro (0,22 km) e Cima (1,15 km).
Localizado na zona sub-saheliana, o arquipélago é caracterizado por condições climáticas de aridez e semi-aridez. Conta com duas estações: a das chuvas ou das „aságuas“ (muito irregulares) – de Agosto a Outubro – e a estação seca, ou o „tempo das brisas“, que vai de Dezembro a Junho. Os meses de Julho a Novembro são considerados meses de transição. A penúria em água é uma constante. As secas são frequentes e pelo passado (até os finais dos anos 40), acarretavam frequentemente a fome que dizimava, por vezes, 10 a 30% dos seus habitantes.
Pelo menos algumas das ilhas eram já conhecidas de populações africanas, gregos e geógrafos árabes, muito antes da chegada dos portugueses. Segundo Jaime Cortesão1, apesar das informações incompletas fornecidas por esses geógrafos, as ilhas eram conhecidas de alguns cartógrafos, „…nos mapas que acompanharam a obra de Idrisi, figuravam algumas das ilhas, uma das quais tinha o nome de Aulil: Alguns séculos mais tarde, o mapa mundo de Macias de Viladestes de 1413, que se encontra na Biblioteca Nacional de Paris, apresenta em frente do Rio do Ouro, claramente identificado como sendo o Nilo do Ghana, isto é, o Senegal, duas ilhas de tamanho e forma iguais, com o nome de Ilhas de Gaderi no mapa mundo de Andrea di Bianco de 1448. Estas mesmas ilhas aparecem de novo frente à costa entre o Senegal e Cabo Verde, com o nome de Dos Hermanos“. Para esse historiador, eram as duas ilhas mais orientais do Arquipélago: Sal e Boavista conhecida como ilha das tartarugas.
Admite-se, de modo geral, que as ilhas tenham sido encontradas pelos portugueses durante duas viagens sucessivas entre 1460 e 1462. Essas datas são conhecidas através dos seguintes documentos:
O diploma de 3 de Dezembro de 1460 (vinte dias após a morte do Infante D. Henrique) que apenas faz referência às cinco primeiras do grupo ocidental: Sam Jacob (Santiago), Sam Filipe (Fogo), De las Mayes (Maio), Sam Christovam (Boavista) e Lana (Sal) que D. Afonso V doou a seu irmão D. Fernando.
A Carta de doação de 19 de Setembro de 1462 que se refere às cinco acima mencionadas, às cinco restantes e a dois ilhéus: ilha Brava, ilha de Sam Nicolau, ilha de Sam Vicente, ilha Rasa (ilhéu Raso), ilha Branca (ilhéu Branco), ilha de Santa Luzia e a ilha de Sant’Antonio (Santo Antão).
Admite-se igualmente, que as cinco primeiras tenham sido encontradas ainda em vida do Infante D. Henrique pois o diploma a que acima nos referimos as transfere para o Infante D. Fernando do mesmo modo que as tinha recebido aquele infante. Ainda segundo documento do Arquivo Histórico Ultramarino (Cabo Verde, Cx. 4), numa consulta do Conselho Ultramarino2, de 5 de Setembro de 1679 que se ocupava da celebração de missas „em sufrágio da alma de D. Henrique“, refere-se a ele como „descobridor das ilhas de Cabo Verde“.
Quanto à identidade dos „descobridores“, a maioria dos historiadores que versaram sobre esta questão – e estamos de acordo com eles – consideram que as cinco primeiras foram achadas por Antonio de Noli, genovês ao serviço do Infante D. Henrique e Diogo Gomes, navegador português, e as restantes por Diogo Afonso, escudeiro do Infante D. Fernando.
Em contrapartida, discordamos da maioria que pretende que o Arquipélago era desabitado aquando do seu achamento. Como muitos outros – entre eles o António Carreira 3- somos de opinião que não se deve excluir a hipótese de Santiago ter abrigado um pequeno grupo de náufragos Jalofos ou outros habitantes (Sereres, Felupes, Lêbus, etc) de Cabo Verde (Senegal). Esses dois últimos grupos, reza a tradição oral, vinham às ilhas atraídos pela sua riqueza em peixe e buscar sal, na ilha do Sal, que trocavam por ouro de Tombuctu4.
É a quase inexistência de uma população suficientemente importante e bem enraizada nas ilhas que determinou o tipo de povoamento que viria a ser adoptado. Inicialmente, as autoridades portugueses quiseram, à semelhança das suas outras ilhas atlânticas, Açores e Madeira, promover um povoamento europeu que falhou.
Ao receber as ilhas em doação, D. Fernando recebeu, simultaneamente, o direito de as povoar. Para recompensar os „descobridores“ do arquipélago, a ilha de Santiago, a primeira a ser povoada, foi partilhada em duas capitanias: a meridional (então Ribeira Grande e actualmente, Cidade Velha), foi atribuída a Antonio de Noli e mais tarde, a setentrional (Alcatrazes), a Diogo Afonso. Foi-lhes acordado, paralelamente, o cargo de capitães-donatários: por um lado, beneficiavam de largos privilégios económicos e por outro, detinham o direito de estabelecer impostos, conceder enfiteuse e terras aos colonos em regime de sesmaria; detinham, igualmente, extensos poderes de jurisdição, embora limitados pelo Tribunal do Reino em relação às causas penais.
Desde a primeira metade do século XV, introduziu-se em Santiago o sistema de Morgadios e Capelas que viria a ser abolido em 1864.
Antonio de Noli foi o primeiro a chegar a Santiago, em 14625, acompanhado de alguns membros da sua família e de portugueses do Alentejo e do Algarve; instalaram-se na Ribeira Grande, dando início ao primeiro povoado. Essa localidade foi escolhida por ser dotada de uma enseada defronte da foz de uma então rica ribeira e por possuir recantos onde os navios podiam abrigar-se. Dispunha igualmente, nas proximidades imediatas, de terreno onde viriam a ser lançadas as bases de desenvolvimento de uma agricultura de rentabilidade e outra de subsistência.
O rigor do clima tropical, a impossibilidade de praticar o mesmo tipo de culturas a que estavam habituados e a própria fraqueza demográfica de Portugal – cuja população não se tinha reconstituído ainda da enorme quebra provocada pela peste negra que devastou o país no século XIV – constituíram verdadeiros entraves à fixação europeia em Cabo Verde.
Assim, para promover a imigração europeia e poder recorrer à mão de obra escrava, D. Fernando solicita ao seu irmão e obtém, grandes liberdades e privilégios, através da Carta Régia de 12 de Junho de 14666. Com efeito, o rei D. Afonso V concedeu a D. Fernando, uma espécie de jurisdição em matéria cível e criminal em relação a todos os „Mouros, Negros ou Brancos, livres ou escravos que fossem cristãos“, e aos habitantes de Cabo Verde, o direito perpétuo de fazer o comércio e o tráfico de escravos, em todas as regiões da então Costa da Guiné (que ia do rio Senegal à Serra Leoa), exceptuando a feitoria de Arguim, cuja exploração estava reservada à Coroa. Mercadores reinóis e castelhanos fixaram-se à volta do porto da Ribeira Grande, dando início à formação de uma próspera comunidade de moradores e vizinhos.
Pela sua posição privilegiada, a meio caminho entre os três continentes e para mais, em frente da dita Costa dos Escravos, Santiago tornou-se cedo a placa giratória da navegação transatlântica: ponto de escala e de aprovisionamento dos navios, ponte de penetração portuguesa no continente, entreposto de escravos posteriormente exportados para a Europa – particularmente para Portugal e Espanha – e para as Américas. Durante os dois primeiros séculos de colonização, os escravos representaram, seguramente, a mercadoria mais importante das exportações caboverdianas.
Nos primeiros tempos, os escravos eram trazidos de toda a dita Costa. Mas, com a entrada em cena de outras potências coloniais (França, Holanda, Inglaterra), a reserva de escravos da Coroa ficou reduzida aos limites da Guiné Bissau que englobava, até 1886, a Casamansa (Senegal)7.
No povoamento das ilhas, não houve apenas escravos, houve também negros livres, nomeadamente, banhuns, cassangas, e brâmes, que acompanhavam espontaneamente os comerciantes, mercenários e capitães de navios; muitos deles falavam a língua portuguesa e alguns vinham a Santiago para serem cristianizados8.
Entre os portugueses, diz Simão de Barros9, foram os originários da Madeira que forneceram o maior número de indivíduos, no processo de formação do povo caboverdiano. Houve nobres, mas também deportados políticos e de direito comum.
Perante a escassez de mulheres brancas nas ilhas, nos primórdios da colonização, com o decorrer dos tempos, no isolamento das ilhas, os senhores brancos foram-se juntando com uma ou mais mulheres escravas, dando assim início ao processo de mestiçagem que, actualmente, toca a maioria da população caboverdiana10.
„Durante séculos, os dois grupos em presença [africanos e europeus] enfrentando um novo meio, em contacto permanente e directo, sofreram um e outro, mudanças nos seus modelos culturais e, com o tempo, forjaram uma cultura própria, resultado da multiplicidade de micro-processos de invenção, de imitação, de aprendizagem e de adaptação.
O todo cultural que daí resultou, possui identidade própria, „identidade“ no sentido da especificidade colectiva de um grupo humano em relação a outro e „cultural“ como tudo o que pressupõe conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e quaisquer „outras tendências e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade“11.
O povo dotou-se de uma língua própria, o caboverdiano, que apesar da diversidade da pronúncia característica de cada ilha, e da maior ou menor predominância do léxico de origem portuguesa, constitui um idioma comum a todas as ilhas e a quase todas as classes sociais. (…)
„Apesar da política de assimilação praticada pelas autoridades coloniais, no sentido de manter a supremacia da cultura portuguesa e da repressão sistemática das manifestações culturais africanas, consideradas primitivas e pagãs, a sociedade caboverdiana, nascida do encontro das culturas europeias [sobretudo a portuguesa] e africana (fundamentalmente a guineense), continua profundamente africana.
Mas a assunção da „africanidade“ caboverdiana engendrou no passado, vários problemas (que ainda não estão todos ultrapassados a nível da elite caboverdiana e de uma boa percentagem da população caboverdiana que não escapou, de forma alguma, da ideologia colonial racista“12.
A segunda ilha ser povoada, ainda antes do século XV, foi Fogo e as duas últimas, São Vicente e Sal, praticamente a partir da terceira década do século XIX. Cada uma delas apresenta características que lhes são peculiares.
Sobre as diferenciações regionais, escreve João Lopes Filho13, „São (…) um tanto diferentes, ou relativamente diferenciáveis, as sensibilidades dos vários ilhéus, visto que (sem descer a pormenores), é sabido, por exemplo, que, na generalidade, não reagem da mesma maneira o „santantonense“ e o „santiaguense“, o „sanicolaense“ e o „foguense“, ou ainda o „santiaguense“, e o „bravense“ (para nos referirmos a ilhas do mesmo „grupo“ – Barlavento, Sotavento), etc. Tornam-se portanto evidentes as diferenças de comportamentos, hábitos, estilos de vida, tradições, crioulo local, enfim, a „personificação social“ das diversas ilhas caboverdianas, advindas, por certo, dos vários processos utilizados nos respectivos povoamentos e suas consequências na evolução sócio-cultural de cada uma.
Deste modo, ao fazer-se uma análise coerente e sem apressadas generalizações do ponto de vista bio-físico e cultural, é forçoso ter-se presente as características específicas de cada ilha, porque estas influenciaram significativamente as relações sócio-económicas amassadas ao longo dos séculos e traduzidas no binómio homem-ambiente“.
Baseadas na mão-de-obra escrava (87,5% da população em 1582 e 5,8% em 1856) foram organizadas, essencialmente em Santiago, as grandes plantações agrícolas de cana de açúcar e algodão. No início, esse último produto era exportado em bruto mas, com a importação de escravos tecelões que trouxeram com eles os teares, possivelmente da Guiné Bissau, inicia-se, nos meados do século XVI, a tecelagem dos panos que se tornaram essenciais na aquisição de escravos ou na troca por outros produtos, na costa continental africana ou mesmo para pagamento de funcionários nos períodos de escassez de moedas em Cabo Verde, isso durante cerca de quatro séculos.
Menos de um século após o seu achamento e início do seu povoamento, Ribeira Grande era já uma pequena vila, centro de comércio florescente de produtos africanos; atraía castelhanos, canarianos, italianos e franceses pelo seu movimento de negócios mas também colonos portugueses, imigrantes nobres, cavaleiros e honestos homens de Portugal que para aí vinham à procura de riqueza.
Considerando-a suficientemente importante, o rei de Portugal, D. João III (1521 – 1557) solicitou em 1507 ao Papa Clemente VII que Ribeira Grande fosse separada da diocese de Funchal (Madeira) à qual estava até então ligada para se constituir numa diocese autónoma. Pela bula Pro Excellenti de 31 de Janeiro de 1533, Cabo Verde e Guiné Bissau constituíram uma diocese com sede na Ribeira Grande que foi elevada à condição de cidade para poder acolher a capital da diocese. Em 1530 já tinha recebido a Carta de Vila.
Ao mesmo tempo que se tornava capital eclesiástica, civil e militar, os poderes da diocese estenderam-se sobre a costa ocidental do continente africano, do rio Gâmbia ao sul do Cabo das Palmas. Á Igreja da paróquia sucedeu a Catedral e um Cabido14 foi constituído por cinco dignitários e doze cónegos. A diocese dispunha já de várias igrejas, um almoxarifado, uma feitoria, numerosas residências de europeus, entrepostos e outras instalações comerciais.
Pouco mais de um século após o desenvolvimento florescente do comércio e de enriquecimento das classes abastadas a cidade, por razões diversas começa a cair em declínio. A insalubridade do seu clima levava muitos dos seus habitantes a deixá-la e a instalarem-se na então povoação da Praia. O porto era demasiado pequeno, com muitos escolhos e maus ancoradouros. Com efeito, com a abertura do porto da Praia em 1612 a cidade de Ribeira Grande perde a sua importância e entra em decadência.
O declínio geral do comércio e do tráfico de escravos, em particular, decorriam da concorrência feita por outras potências e dos frequentes ataques dos piratas. Os mais terríveis foram os perpetrados pelo inglês Francis Drake em 1578 e 1585 e em 1712 pelo francês Cassard. Tendo atacado a cidade com uma força de dois mil homens, queimaram as casas, apanharam escravos e fizeram das mulheres e crianças reféns. Pilharam a cidade por mais de três milhões de libras, avalia-se. Como escreveu Frederico Cerrone na sua História da Igreja de Cabo Verde (subsídios), a cidade ficou como uma necrópole que jamais pode renascer das suas cinzas.
Segundo dados recolhidos por João Estevão15, a evolução dos grupos raciais e o número de escravos e libertos na população total em Cabo Verde apresentou-se assim, durante os três últimos séculos (em percentagem):
Grupos raciais
1731
1807
1900
1940
1960
Brancos
2,6
3,0
2,6
3,1
1,4
Mestiços
29,1
41,5
64,2
64,5
79,0
Negros
68,2
55,5
33,2
32,4
19,6
Libertos
51,1
46,7
–
–
–
Escravos
17,2
8,5
–
–
–
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As alforrias concedidas, que deviam acompanhar o desenvolver dessa mestiçagem, a resistência contínua dos escravos, o processo de abolição desencadeado a nível mundial, os movimentos sociais que marcaram, essencialmente Santiago, a partir do segundo quartel do século passado16, tiveram como corolário, a extinção progressiva do tráfico negreiro e da escravatura em Cabo Verde.
As primeiras leis que iniciaram esse processo foram publicadas em 1856 e a da abolição efectiva – pelo menos em termos jurídicos – extensiva a todos os territórios coloniais portugueses, em 1878.
Os esclavagistas reivindicaram e conseguiram que lhes fosse concedido um certo tempo para recuperarem o capital investido na compra dos escravos. Por sua vez, as autoridades coloniais puderam dispor de um certo tempo para constituir uma outra alternativa colonial à sociedade escravocrata.
Na primeira década do século XVI, Cabo Verde já exportava peles, couros, sebo, algodão, cavalos, açúcar. Valentim Fernandes (1506-1508)17, ao referir-se à Ilha de Santiago, salientava que esta produzia frutos que eram cultivados em Portugal: figos, uvas melões e „açucares“. Mais tarde, Gaspar Frutuoso (1582-1591)18 e Fernão Guerreiro (1600-1603)19 informaram: o primeiro, que Santiago produzia muito açúcar e o segundo, que este açúcar era de boa qualidade. Em 1872-1873 o arquipélago é ainda exportador (337 t) e no início deste século passa à condição de importador (360 t em 1901).
No que diz respeito ao algodão, com a introdução do tear em meados do século XVI, começou-se a exportar panos, sobretudo para o continente africano, e desde os primeiros anos do século XVII, o óleo de baleia, para o Brasil20. Segundo as Provisões de 1791-1792, da preparação da baleia, dois terços revertiam para a Coroa e só um terço cabia às populações, em retribuição do trabalho fornecido para o corte dos cetáceos e a extracção do seu óleo por cozedura.
O leque dos produtos exportados alargou-se nos meados do século XIX. Com efeito, Cabo Verde exportava, além de escravos e panos, algodão, peles, couros, tartarugas, milho, aguardente, sangue de drago21, tabaco, âmbar, urzela, óleo e sementes de purgueira22, e sal. Mas a sua importância relativa já não era a mesma. A exploração da urzela, do âmbar, do dragoeiro, da tartaruga, pertencia à Coroa23.
Durante o período de economia esclavagista, a Coroa limitou-se, por um lado, a monopolizar os principais produtos que constituíam fontes de rendimento e, por outro, a explorar apenas o que não exigia esforços em investimentos ou inovações técnicas. Além disso, as classes abastadas locais, pelo próprio facto da dominação colonial, não puderam reconverter-se numa classe de empresários capitalistas – nem no meio rural nem a nível industrial – capaz de inovações e transformações fundamentais.
A ausência dessas inovações e o pouco trabalho de defesa e restauração dos solos, aliados à exploração forçada do homem e da natureza, conduziram, como consequência lógica, ao declínio da agricultura e da criação do gado. A revolução industrial viria assentar o golpe fatal aos produtos que fizeram enriquecer as classes abastadas de Cabo Verde e a Coroa portuguesa. Face à concorrência dos produtos industrializados de Europa, apenas sobreviveram a destilação de aguardente (em condições técnicas totalmente ultrapassadas) e a extracção do sal.
Se as outras colónias portuguesas de África, sobretudo Angola e Moçambique24, apresentavam um potencial propício às novas funções que lhes seria atribuída no âmbito na nova divisão internacional do trabalho – fornecer matérias primas e/ou servir de escoamento para os produtos manufacturados portugueses- Cabo Verde enfrentava à partida um certo número de constrangimentos: a modicidade da sua superfície (4033 km2), uma população reduzida (147 424 habitantes em 190025), donde a estreiteza do seu mercado, a quase inexistência de produtos naturais minerais importantes.
Na impossibilidade de incentivar o desenvolvimento de outras culturas alternativas de rentabilidade, dentro das nova repartição de funções, a Cabo Verde é reservado o papel de colónia de serviço e exportador de mão de obra contratual, forma nova de escravatura, essencialmente para as roças de São Tomé e Príncipe.
Efectivamente, depois do envio compulsivo de caboverdianos para a Guiné Bissau em 176526, um século mais tarde foram promulgadas (em Dezembro de 1863), algumas leis que obrigavam os caboverdianos a ir trabalhar para as roças dos colonos de São Tomé e Príncipe. Só se pôs fim a essa emigração forçada, em 1970.
Quanto à sorte do „serviçal“ caboverdiano em São Tomé e Príncipe, ao fim de um período de três ou cinco anos de trabalho (renovável mas muito raramente renovado), voltava para Cabo Verde tão miserável como à partida. Ademais, regressava enfraquecido por causa das doenças, da diferença climática, do regime alimentar diferente, dos maus tratos, etc. De retorno ao país, trazia consigo, em geral, entre 1 000 e 3000 mil escudos que conseguiu economizar durante esse período27.
A ideia de valorização de Cabo Verde como colónia de serviço assenta na importância que este arquipélago revestiu em relação ao comércio e à navegação de longo curso, desde os primórdios do comércio triangular de escravos.
Como constataram Galvão e Selvagem (op. cit.), foi a sua situação geográfica que o tornou a escala ideal nas rotas atlânticas e que foi sempre, uma das suas mais extraordinárias riquezas. A sua localização privilegiada, era também a mais promissora.
Para esses autores, na impossibilidade de equipar os quatro portos de que o arquipélago era dotado (por dificuldades financeiras), tudo encorajava a concentrar no porto de São Vicente „os esforços para valorizar a colónia como nó de comunicações atlânticas“28.
Com a instalação no Porto Grande (S. Vicente) , pelo cônsul inglês John Rendall em 1838, do primeiro depósito de carvão, outras sociedades inglesas virão aí instalar-se provocando não só o aumento significativo do número das embarcações que demandavam os seus serviços mas também o desenvolvimento de outras actividades a nível interno, nomeadamente comerciais, que implicavam uma certa expansão do aparelho bancário, administrativo, bem como dos meios de armazenagem e de transporte.
Em 1874, os ingleses foram autorizados a instalar cabos submarinos no Porto de São Vicente ligando-o à Madeira, à Europa, e ao Brasil. Sete anos depois, os cabos foram estendidos até à Praia, ligando-a igualmente à Europa e à África Oriental. Em 1923 a Itália foi ainda autorizada a instalar cabos submarinos em São Vicente, estendendo a sua ligação à América do Sul.
Os cabos submarinos que asseguravam as ligações telefónicas, cuja exploração foi deixada às sociedades estrangeiras, apenas trouxeram „royalties“ para Cabo Verde.
Em 1939 arrancam as primeiras obras aeroportuárias em Espargos, ilha do Sal, realizadas pela companhia italiana de navegação aérea, LATI. Entre 1960-1963 são modernizadas as infra-estruturas aeroportuárias de Espargos para acolher aviões a propulsão do tipo Boing B-707. A South Africa Airways tornou-se e e continuou sendo, até a queda do apartheid na África do Sul, a principal utilizadora dos serviços deste aeroporto.
O Porto Grande de São Vicente, que poderia ter constituído um verdadeiro polo de desenvolvimento através de actividades anexas induzidas (manutenção e reparação de navios, seu abastecimento, empregos de carga e descarga dos navios, etc.), e direitos de escala pagos, só foi modernizado após a construção dos portos de Las Palmas , de Tananarive e Dacar que, de longe mais bem equipados, desviam a seu proveito uma parte da navegação transatlântica:
O ritmo muito elevado do crescimento demográfico, uma agricultura atrasada e incapaz de responder às necessidades de consumo interno, uma indústria quase inexistente e extrovertida29, criaram um desequilíbrio entre a população e os recursos disponíveis. Além do impacto fortemente negativo sobre a balança comercial, a aceleração dos fluxos migratórios (fenómeno estrutural da sociedade caboverdiana) aparece, neste contexto, como a única solução possível para o restabelecimento do equilíbrio entre recursos/população. Mas é, contudo, necessário ter em conta que os que „…emigram são (apesar da importância da emigração feminina), maioritariamente do sexo masculino e, na maior parte das vezes, deixam as suas famílias no país. Em vista disso, as mulheres são obrigadas, por um lado, a assegurar a educação dos filhos e, por outro, a vender , frequentemente, a sua força de trabalho nas obras públicas, para poderem garantir a subsistência da família, para além das tarefas que lhes cabem tradicionalmente, no quadro da produção agrícola. (…)
As partidas têm um efeito duplo na estrutura da população: provocam uma distorção do „sex-ratio“ tornando-se o número de mulheres superior ao dos homens; ademais, o número dos inactivos (crianças e velhos) aumenta em relação ao número dos activos“30. Em 1975, só os de menos de 15 anos representavam 47% da população total31.
O declínio contínuo da economia caboverdiana, aliado à seca que devastava o país desde 1968 criaram uma tal situação nos últimos anos que antecederam a independência, que metade das despesas do país passaram a ser asseguradas por uma „subvenção não reembolsável“ de Portugal: Em 1974, essa subvenção representava 54% do total das despesas públicas caboverdianas.
Na realidade, a administração colonial encontrou-se num impasse que não podia ultrapassar sem resolução do problema colonial em si.
Das revoltas de escravos e insurreições que marcaram particularmente o século XIX, até o desencadeamento da luta conjunta de libertação nacional na Guiné Bissau e em Cabo Verde, decorreu um longo tempo em que a acomodação ao „statu quo“ colonial só foi agitada em 1910 com a insurreição camponesa em Ribeirão Manuel (Santiago) contra a arbitrariedade dos proprietários fundiários e em 1934 com uma manifestação em São Vicente de trabalhadores e populares hasteando bandeiras negras e protestando contra a fome que terminou em assalto e saque dos armazéns de alimentos da alfândega e de várias casas comerciais32.
As ideias de independência ou de autonomia em ligação com o Brasil, por vezes presentes nos levantamentos do século passado33, não se verificam mais, pelo menos expressamente, até à Segunda Guerra Mundial.
Finalmente, as ideias de autonomia ou de independência nacional tanto tempo deixadas adormecidas foram reacendidas nos anos 40 com a geração de Amilcar Cabral. O seu corolário foi a organização da luta de libertação nacional, com a criação, em 1956, em Bissau, do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (P.A.I.G.C.). A partir daí, os percursos do P.A.I.G.C. e de Amilcar Cabral serão indissociáveis até ao seu assassinato, a 20 de janeiro de 1973.
Mas, se o assassinato de Amilcar Cabral foi uma perda irreparável para os guineenses como para os caboverdianos, esse crime não conseguiu desmantelar nem o P.A.I.G.C., nem quebrar a vontade dos combatentes de conduzir a luta armada que se processava na Guiné Bissau e a luta política clandestina em Cabo Verde e Portugal até o seu objectivo final: a libertação e Independência da Guiné e de Cabo Verde.
A 24 de Setembro de 1973, após 10 anos de luta armada, considerou-se reunidas as condições para a concretização do projecto de criação de um Estado: a Assembleia Nacional Popular reunida nas zonas libertadas de Boé, proclama, a 24 de Setembro de 1973, a República da Guiné Bissau, Estado independente e soberano, forma-se um executivo e adopta-se a primeira Constituição do país.
A queda do fascismo português, impulsionada pela luta conjunta das forças progressistas portuguesas, que se apoiavam nas massas populares, e das forças nacionalistas das ex-colónias portuguesas, abre novas perspectivas que aceleram o processo de libertação de Cabo Verde, conduzido, como já dissemos, essencialmente através da luta política clandestina.
Os acordos de Londres e de Argel (26 de Agosto de 1974) conduzirão ao reconhecimento pelo Governo português do Estado guineense e do direito do povo caboverdiano à independência; reconhece igualmente o P.A.I.G.C. como único e legítimo representante do povo do nosso país.
Após a Constituição de um Governo de transição (composto por caboverdianos e portugueses) presidido por um Alto Comissário nomeado por Portugal e representando a soberania portuguesa , o povo caboverdiano elegia meses depois (30 de Junho de 1975) uma Assembleia constituinte – composta por 56 deputados e 72 suplentes) com a participação de 84% dos eleitores. A lista única proposta por esse Partido recebeu 92% dos sufrágios expressos. Esta Assembleia viria a proclamar a Independência da República de Cabo Verde a 5 de Julho de 1975 e promulgar uma lei sobre a Organização Política do Estado que fez as vezes de Constituição até a aprovação desta na IX sessão legislativa de 5 de Setembro de 1980.
O Presidente da República foi eleito e alguns dias depois formou o primeiro Governo do Estado de Cabo Verde, dirigido por um Primeiro Ministro.
Este magnífico trabalho foi elaborado pela: Elisa Andrade – Investigadora em Ciências Humanas e Sociais
Excelente artigo da Dra. Elisa Andrade – Investigadora em Ciências Humanas e Sociais, com um levantamento exaustivo da história de Cabo Verde. Também fala-se sobre a „Cidade Velha“ e os „Rabelados“